A saúde ocular em Portugal e no mundo e a cegueira que podemos e temos que evitar
Por Dr. Rufino Silva
Prof. da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia
Cerca de 85% da informação que recebemos através dos órgãos dos sentidos chega-nos pela visão. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 253 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com deficiência visual e 36 milhões estão cegas. Estima-se igualmente que 75% dos casos de cegueira poderiam ter sido evitados ou tratados se os serviços oftalmológicos adequados tivessem estado disponíveis e acessíveis.
A saúde ocular é essencial para o bem-estar, a qualidade de vida, a relação interpessoal e o desempenho profissional de todos nós. Em Portugal e em todo o mundo, a atenção à saúde ocular é fundamental para prevenir, diagnosticar e tratar as doenças que podem levar à cegueira. Investir na saúde ocular da população diminui significativamente os custos associados à redução da produtividade e aos cuidados médicos prolongados. Pode significar a diferença entre estar dependente dos cuidados de outra pessoa por deficiência visual ou estar completamente autónomo podendo ler, conduzir e trabalhar.
A nível mundial, o acesso aos cuidados médicos na área da saúde ocular varia de forma muito acentuada entre países e regiões e mesmo dentro do próprio país. Em muitas regiões em desenvolvimento a acessibilidade aos serviços oftalmológicos é muito limitada devido a fatores como falta de recursos, infraestruturas inadequadas e escassez de profissionais de saúde especializados. Nestes países, organizações internacionais e ONGs desempenham um papel crucial na prestação de cuidados oftalmológicos em áreas carenciadas. É também nestes países que as taxas de cegueira são mais altas.
Os erros refrativos e a catarata são responsáveis por mais de 50% dos casos de cegueira a nível mundial e são facilmente “curados” através da correção com óculos e da cirurgia, respetivamente, restituindo a esta grande franja da população uma visão normal. Outras doenças causadoras de cegueira nestes países, como por exemplo o tracoma ou a oncocercose (cegueira dos rios) são objeto de campanhas de prevenção e tratamento em diferentes partes do globo muitas vezes através de Organizações internacionais e ONGs.
O programa “Vision 202/20 – The right to sight” (1999-2020) lançado e liderado pela OMS e pela Agência Internacional de Prevenção da Cegueira foi uma iniciativa global que teve como objetivo prevenir e tratar as principais causas de cegueira evitável e que incluíam a catarata, o tracoma, a oncocercose, a cegueira infantil, os erros refrativos e a baixa visão.
Este programa foi estruturado a nível global, com entidades governamentais, ONGs, entidades académicas, entidades publicas, privadas e sociais, organizações e associações profissionais. Permitiu resultados muito significativos na redução da cegueira a nível mundial através da melhoria do acesso aos cuidados médicos, da prevenção, da administração de medicamentos em larga escala para o tratamento do tracoma e da oncocercose, de programas de formação para prestadores de cuidados na área da saúde ocular, da realização de milhões de cirurgias de catarata e da correção de erros refrativos, em larga escala.
Apesar dos sucessos deste programa há ainda enormes desafios a resolver em todo o mundo e particularmente em países com baixos recursos económicos onde o acesso aos cuidados médicos na área da saúde ocular são muito limitados. Têm sido feitos esforços para continuar o trabalho sob a coordenação da OMS de forma a erradicar a cegueira e a perda grave de visão evitáveis.
E em Portugal? Em Portugal, como em muitos países, a cegueira e a baixa visão são problemas de saúde publica importantes. Estima-se que haja em Portugal cerca de 160 mil pessoas com deficiência visual e 25 mil são consideradas cegas. Existe uma assimetria no acesso aos cuidados médicos na área da saúde ocular com melhores cuidados no litoral e piores a sul do pais e no interior.
De acordo com um estudo efetuado pelo Centro de Estudos Aplicados da Universidade Católica e pela Sociedade Portuguesa de Oftalmologia o acesso aos cuidados de saúde na área da Oftalmologia reparte-se pelo sector privado (cerca de 57%), Sistema Nacional de Saúde (35%) e setor social. Perante problemas de saúde ocular, 77 % das pessoas realizaram diagnóstico junto de um Médico Oftalmologista o que parece revelar uma preocupação da população em procurar um profissional preparado para esta função.
Em relação à saúde ocular das crianças, 23.5% das pessoas inquiridas admitiram nunca ter feito uma avaliação da saúde ocular aos seus filhos e apenas 45% admitiram ter levado os seus filhos ao rastreio de saúde visual infantil.
O mesmo estudo mostrou ainda dois outros dados preocupantes: cerca de 13% das pessoas nunca tinha efetuado qualquer consulta para avaliar a sua saúde ocular e 28% revelaram que só recorriam à consulta quando sentiam ter problemas graves.
Esperar pela perda de visão para consultar o médico Oftalmologista, não atuando no campo da prevenção pode trazer diagnósticos tardios e perdas irreversíveis de visão que poderiam ter sido evitadas. E de facto, as principais causas de cegueira e baixa visão em Portugal incluem três doenças nas quais a prevenção, o diagnostico e o tratamento atempados podem impedir a perda grave de visão e a cegueira.
São elas a retinopatia diabética, a degenerescência macular da idade (DMI) e o glaucoma. Não são, ao contrário do que se possa pensar as doenças hereditárias ou a catarata. Em cerca de 90% dos casos de retinopatia diabética a cegueira pode ser evitada com um bom controlo metabólico da diabetes e com o diagnostico e tratamento atempado da retinopatia. Em relação à DMI temos atualmente medicamentos que nos permitem tratar a forma “húmida” da doença e reduzir de forma significativa a taxa de cegueira desde que o tratamento seja iniciado precocemente, nas primeiras duas semanas após o início dos sintomas (distorção das imagens, perda súbita de visão).
É importante que o acesso aos cuidados médicos seja rápido uma vez que quando se inicia o tratamento com visões muito baixas (na grande maioria dos casos por acesso tardio ao tratamento) raramente se consegue recuperar a visão para voltar a ler ou conduzir. Em relação ao glaucoma, o diagnostico atempado e o tratamento adequado podem impedir a progressão para a cegueira em 95% dos casos.
Há, pois, um trabalho enorme ainda por desenvolver para diminuir a taxa de cegueira e de baixa visão em Portugal. É evidente que uma parte significativa da população não faz uma avaliação da sua saúde ocular, nem tão cedo, nem tão regularmente, como seria recomendado. Torna-se necessário melhorar a comunicação e efetuar ações de sensibilização de forma a aumentar a consciência e proatividade da população para a sua saúde ocular.
A facilidade de acesso aos cuidados de saúde na área da Oftalmologia é igualmente essencial para melhorar a saúde ocular dos portugueses.
Fonte: “Medjournal”, julho de 2024.